quinta-feira, dezembro 22, 2011

O Universo e Você



Lembrava-se dela na época da escola. Pequena, magra, os olhos escuros demais e marcados pela maquiagem gasta do dia anterior. Ela gostava de livros complexos, e ele gostava dos movimentos intermitentes dos seus dedos nervosos. Impaciente, porém centrada. Ele sabia, desde cedo, que ela não era daquele lugar, que ela não pertencia dentro dela mesma, e ela estava aprendendo lentamente a mesma coisa. Não foi com surpresa, então, que recebeu a notícia quando se formaram: “Eu vou embora.”

Ele podia ter dito uma centena de motivos para os quais ela deveria ficar, todos eles convincentes, todos eles apaixonados. Ela entenderia, aceitaria, mas não abdicaria da sua inquietude e o anseio da partida iria acompanhá-la para sempre. Então, ele simplesmente sorriu, balançou a cabeça, beijou-a no rosto e desejou boa sorte.

Quando o telefone tocou naquela manhã e interrompeu a sua rotina diária e enfadonha, esperava que fosse algum atendente de telemarketing. Foi sincero ao dizer que não reconhecia a voz do outro lado. Não adivinhou quem poderia ser. Não lembrou de nenhum dos momentos descritos, e ela enfim, desistiu: “Sou eu, Luana.”

Quinze anos depois, ela não parecia a mesma pessoa. Nem ele. Deixou a barba crescer, emagreceu alguns quilos e cortou o cabelo. Usava jeans e camiseta, simples, como era sua personalidade. Muito diferente dela. Não que suas roupas fossem extravagantes, não eram. O problema eram seus olhos. O negro profundo e a maquiagem gasta foram substituídos por um olhar que parecia carregar todo o conhecimento reunido do mundo. Com os olhos, ela enxergava o universo dentro dele e muito mais. Ela sorria enquanto segurava nos dedos uma xícara de café. Ele estava atrasado.

- Ei... Bruno. E aí... – ela disse com carinho, beijou o rosto dele e balançou a cabeça. – Sentaí.

Ele retribiu e sentou-se. Olhou para o garçom, chamou-o e pediu uma soda italiana de maçã-verde. Quando voltou-se na direção dela, ela o encarava.

- Como você tá? Quanto tempo faz que voltou pra cá? – ele perguntou. Ela sorriu.

- Voltei ontem a noite. Não foi fácil te achar...

- Quinze anos, não deve ter sido fácil de achar a sua mãe... – ele sorriu, ela riu de forma contida.

- Você tá igualzinho. – ela bebeu mais um gole do café.

- Você não. – ele aceitou a bebida do garçom e voltou a observá-la com mais atenção. Percebia que toda a inquietude fora substituída por uma intensa calma.

- Quinze anos é muito tempo.

- É. Eu não.

- Que bom.

- Bom? – ele ergueu a sobrancelha, curioso.

- É. Estava torcendo pra você ter continuado a mesma pessoa.

- Porquê?

Ela se ajeitou na cadeira e franziu o cenho, como se estivesse prestes a dizer alguma coisa muito importante.

- Eu acredito que algumas pessoas já nascem completas dentro delas mesmas. Elas são suficientes por si próprias. São pessoas que não precisam de referência pra saber o que é certo, o que é errado. Que tem sentimentos profundos antes mesmo de saber o que eles significam. Acho que você é assim, por isso não precisa mudar. Eu, eu era incompleta, inquieta, ávida, impaciente. Eu precisava me descobrir.
Ele pareceu encabulado por alguns segundos.

- No entanto, eu sou uma pessoa simples. Você carrega o universo que somou nas suas experiências dentro do olhar. Eu vejo em você o peso das suas vivências e uma leveza transparente de quem já não precisa mais de nada a não ser si mesma.

- Mas eu preciso...

- Do que?

- Você já ouviu dizer que algumas vezes precisamos dar a volta mais longa para atravessar a rua, somente para chegarmos no mesmo lugar que chegaríamos de qualquer jeito? - ela estendeu a mão por sobre a mesa, encostando a ponta dos dedos na mão dele. Ele pareceu incomodado.

- Já.

- Eu sempre soube que chegaria aqui. – e segurou a mão dele.

quinta-feira, agosto 18, 2011

Olhares



Ele se movia despretensiosamente.

Escondia-se atrás de uma multidão de pessoas que seguiam as batidas do ritmo intenso e ululante da canção. Ela ecoava pelo salão, vibrando com a pele, arrepiando os pelos, aflorando emoções.

Ao olhar ao redor, por sobre os ombros das pessoas que se moviam, percebia que praticamente todas as paredes da casa se tornaram pequenos nichos de suor e beijos. Suor, esse, que escorria de forma vertiginosa das suas têmporas. O coração batia de forma acelerada, fosse pelo energético em suas mãos ou pela sensação de claustrofobia que hora ou outra tomava conta da sua mente por alguns segundos. Era costumeiro que ele precisasse concentrar-se em locais abarrotados.

Decidiu que era hora de trabalhar. Sacou da capa de proteção a máquina fotográfica: irritava-se, com freqüência, com sua profissão. Achava que hoje em dia todos que compravam uma câmera profissional automaticamente transformavam-se em fotógrafos, e isso desvalorizava o trabalho de tantos outros como ele.

Começou a fotografar algumas cenas, alguns rostos, algumas pessoas. Hora ou outra um braço, uma perna ou uma cabeça interferiam no quadro que ele buscava, mas já estava acostumado. Hora ou outra, uma mão encostava no seu corpo, mas ele aprendera a ignorá-las. No entanto, uma segurou-lhe com mais intensidade. Intensidade delicada de mulher. Ele moveu o rosto na direção da mão, já começando a pronunciar uma desculpa qualquer.

- Desculpa, não consigo te...

Ela sorriu, arqueou a sobrancelha escura e encarou-o nos olhos.

Ele parou. Balançou a cabeça.

- Desculpa, eu não te ouvi.

- Tudo bem, ninguém consegue ouvir ninguém aqui dentro. A não ser que realmente preste atenção. E, bom... normalmente ninguém tá afim de prestar atenção em muita coisa por aqui. – ela falava com naturalidade, encarando-o nos olhos.

- Verdade.

- Menos você, né?

- Menos eu? – ele franziu o cenho, cerrou os lábios e fez uma expressão de profunda curiosidade. – Porque eu seria diferente?

- Sei lá. Porque você é fotógrafo?

- Hoje em dia todo mundo é fotógrafo.

- Será? – ela soltou uma risada baixa e gostosa. – Acho que é verdade. Mas eu vi você olhando em volta, na verdade, eu também sou fotógrafa. Do meu próprio jeito.

- Ah é? E qual é o seu jeito?

- Eu fotografo com o olhar. Acho que as coisas mais importantes não podem depender de uma máquina fotográfica digital, de bytes de memória. As imagens mais importantes ficam gravadas aqui – gesticulou - no peito, e na alma.

- Faz sentido.

- É, eu sei. – ela riu de novo. Os dentes brancos e perfeitamente alinhados, o rosto vermelho de calor, e os olhos. Os olhos eram negros, como poços profundos de algum tipo de sofrimento ou angústia que ele não sabia distinguir. As curvas acentuadas formavam pequenas ameixas. Ela sustentava o olhar com a rigidez de quem sabe que o importante mesmo não é ver e sim enxergar. Ela continuou.

- Olha só, faz o seguinte. Tira uma foto minha? Só não vai colocar em nenhum site de balada. Muita exposição.

-Tudo bem.

Ela se afastou dois pequenos passos e aguardou. Ele fixou os olhos nela e os manteve ali, por um tempo incontável, uma distorção de alguém que vive em algum lugar por um longo tempo, anos, embora jamais saia do mesmo segundo.

- Pronto.

- Pronto?

- É. – ele sorriu.

Ela fez um maneio com a cabeça, deu as costas e sumiu entre ombros e braços. Cabeças e copos. E ele ficou com a foto.

terça-feira, agosto 16, 2011



Mãos no bolso, ela olhava o horizonte como se alguma coisa muito mais interessante que os olhos escuros, vermelho-irritados por alguma ansiedade da alma, que a encaravam, estivesse acontecendo.

Ele aguardava como fazia a maioria das vezes que se via nessa situação. Considerava surreal a maioria das coisas que ouvia, pensava ou dizia quando se estava sentado frente a frente com ela. Talvez fosse por isso que sempre retornava.

- Não diga que sou fria. – ela disse, em tom frio. As primeiras palavras a escapar os rubros lábios grossos que contrastavam com a pele clara. – Eu sou apenas eu. Você é apenas você. Você sente a necessidade urgente de fugir, de correr, quando as coisas não cabem dentro do seu quarto imaginário. Você precisa sempre se refugiar em algum lugar dentro de você onde ninguém pode te alcançar, e realmente consegue.

- O que você quer dizer com isso? – ele, num tom questionador, irritadiço. Covarde.

- Quero dizer que, como sempre, você é extremamente bem sucedido naquilo que decide pra você. Nesse caso, você é extremamente bem sucedido em se acovardar dentro de si mesmo, de não permitir a exposição por medo sabe lá Deus do que. – ela removeu a tampa do isqueiro elétrico com agilidade e passou a brincar com ele entre os dedos.

- E porque eu deveria me expor? Não é suficiente estar aqui? – ele deu de ombros e ousou um sorriso contrito. De lábios finos. Minguante.

- Nunca é.

- Porquê?

Ela voltou os olhos na direção dele e percebeu o sorriso minguante como uma reação assombrosa de medo disfarçado de descaso. De querer ter controle da situação.

- Porque você não pode passar a vida inteira esperando que as pessoas te vejam como você quer que elas vejam. E não pode fugir todas as vezes que alguém atravessa essa camada. Você devia dormir pelado.

- O que diabos isso tem a ver com qualquer coisa? – se mexeu na cadeira, sentindo-se desconfortável. Ela e o poder mágico de tirá-lo do foco.

- Seu sorriso não é tão significante quanto gostaria. Você não tem o poder mental de manipular objetos ou pessoas à distância, você não é um astro de futebol e nem um grande jogador profissional de poker. A maioria das pessoas não prestaria a menor atenção em você, não fosse pelo interesse de te ver nu. Então, durma pelado. Quem sabe você passa a se habituar com a idéia de que não é tão especial assim, que todos tem medo como você e a diferença é que alguns realmente ousam dizer isso em voz alta ao invés de pegar a mala e sair pela porta da frente, deixando para trás um bilhete espirituosamente sarcástico.

- Eu não sou tão bonito assim para que as pessoas queiram me ver nu.

- Mais um motivo, então. Se nem bonito você é e mesmo assim eu, que sou muito melhor que você, quero te ver nu, você não precisa ter medo de nada.

E o beijou.

sexta-feira, fevereiro 18, 2011



Você já esticou o braço para tentar alcançar uma coisa sabendo que estava distante demais para conseguir pegar. E então, concentrado, esticou todos os músculos até encostar a ponta dos dedos nela e pensou consigo mesmo como seria mais fácil com alguns centímetros a mais?

Então, reunindo uma força de vontade acima do comum, num sinal da mais profunda superação ou sob influência divina do destino, você a agarrou - fosse por um movimento de ombros que você desconhecia, ou uma manobra arriscada de movimento dos dedos, ou até mesmo um estalo repentino da sua coluna permitindo um pouco mais de mobilidade.

E um sentimento efusivo de felicidade preencheu seu peito, um sentimento de vitória, de conquista, e por dentro, você se gabou da sua força resoluta.

Mas você sabia que aquilo que você queria alcançar estava distante demais. Demais. Fora do alcance de qualquer gesto seu, qualquer movimento dos dedos, qualquer alongar da coluna. Seus dedos então tremeram, uma pontada de dor percorreu suas costas, sua manobra de ombro perdeu a consistência e você fraquejou - aquilo que você buscava, deslizou em câmera super slow motion pela palma da sua mão, escorregando na direção do vazio, afundando-se, distanciando-se e perdendo-se no escuro.

Qual seria a sua reação? Um grito de desespero? De susto? Um acelerar das batidas do seu coração? Um espasmo muscular involuntário na palma do pé? Você é um covarde?

Ou você levantaria da sua zona de conforto, saltaria no vazio de braço estendido e perseguiria o seu sonho até novamente alcançá-lo? Distante primeiro, depois com a ponta dos dedos, e por último, na palma da sua mão?